Crônica do catador de latinha e a utopia do mundo sem pecado

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Ontem um catador na praia, abandonou seu saco preto cheio de latinha a uns 2 metros da barraca onde eu estava com os meus amigos. Simplesmente sumiu. Só fomos perceber quando alguns catadores começaram a passar e perguntar com interesse. Para mim, era só lixo, para eles, dinheiro.

E lá ficou o saco por umas 2 horas, sem que ninguém tivesse coragem de pegá-lo. Até que chegou uma catador interessante, quase uma figura teatral: cambaleando, com a voz meio mole de quem tinha bebido todos os restinhos de cerveja das latinhas que carregava nas costas, ele passou a nossa frente. Quando viu aquele saco de latinhas fez uma pausa dramática…

Por uns 5 segundos ele viu aquele milagre a sua frente, um tipo de pote de ouro que poderia ser o fim do seu sofrimento daquele dia de trabalho, caminhando pela areia com sol na nuca.

Num súbito lapso de consciência ele gritou “Não! Eu não posso pegar! Isso é pecado, Deus não ia gostar”. E por uns 3 minutos, ficou parafraseando o que já tinha dito, reforçando que era um homem direito, que ele não roubava, e olhava para cima para mostrar para Deus como ele estava resistindo àquela tentação. Existia na atitude dele uma certa vitória por ser forte e não ceder às forças do mal, mas também existia o sofrimento por não poder se dar bem com aquilo.

Em louvor, ele começou a cantar.

Obviamente concordo que ele tomou a decisão certa de não pegar o fruto do trabalho do outro. Apenas acho triste o raciocínio pelo qual ele chegou à decisão; um raciocínio preso em ordens superiores, em medo de punição e sofrimento.

O pecado é uma das bases de muitas religiões importantes no ocidente, portanto fica sendo a base da nossa moral, que molda as nossas relações.

Somando a moral religiosa aos costumes e às leis, vamos vivendo limitados por forças externas e não potencializados por nossa própria consciência.

Não estou me opondo às leis e aos “bons” costumes (apesar de ser necessário fazer isso muitas vezes), mas simplesmente prefiro viver amparado pela minha consciência, mais do que em ideias prontas que estão fora de mim.

Não seria mais simples para o catador apenas decidir não pegar o saco de latinhas por respeito a uma outra pessoa igual a ele? Isso por acreditar que prefere viver num lugar onde outras pessoas fariam o mesmo, embora ele não tenha como garantir isso?

O que resta se tirarmos o peso do pecado, do medo de apanhar do dono das latinhas e da chance de ser preso? Resta uma pessoa que passa a pensar suas escolhas por sua própria consciência. Não é ótimo? Eu tenho tentado viver assim e garanto que é muito melhor.

Não quis ir lá para explicar que ele não precisava ter medo de nada… No fim das contas, acho, ele estava certo na atitude e só me ajudou a refletir.

Em retribuição e solidariedade, resolvi acompanha-lo em um dueto de “Entra na minha casa, entra na minha vida”. Não me perguntem como eu sei a letra e a melodia dessa música. Isso já é papo para um outro texto.

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